22 julho 2016

07 abril 2016

A fonte tipográfica misteriosa

Ninguém parecia notá-lo ali: um homem sombrio que costumava repousar à beira da ponte Hammersmith (acima), nas noites de 1916, em Londres. E ninguém parecia notar que, durante essas visitas, ele estava jogando algo no rio Tâmisa. Algo pesado.
Ao longo de mais de cem viagens noturnas ilícitas, este homem cometia um crime: contra o seu parceiro, dono de metade do que era arremessado ao Rio Tâmisa; e contra ele mesmo, que motivou a criação daquilo que ele resolveu jogar fora. Este indivíduo venerável, fundador da lendária editora Doves Press e a mente por trás da fonte Doves, era um homem chamado T.J. Cobden Sanderson. E ele estava jogando dentro do rio as fontes de metal cuja criação ele supervisionou meticulosamente.
Sendo uma presença importante no movimento Arts and Crafts da Inglaterra, Codben Sanderson defendeu o trabalho manual contra a industrialização. Ele era brilhante e criativo, e de algumas maneiras, um ludita — porque ele acreditava que assim que morresse, a tipografia criada por ele seria vendida pelo sócio com quem ele brigava, para uso em impressoras industriais.
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Alfred, Lord Tennyson, Sete Poemas e Duas Traduções, Doves Press 1902.
Assim, noite após noite, ele deixava seu legado no rio, ferrando metade do trabalho do sócio e destruindo para sempre uma tipografia bela e lendária. Pelo menos era nisso que ele acreditava.

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Depois de quase cem anos, em novembro do ano passado, um grupo de antigos funcionários do exército – que hoje trabalham para o Porto de Londres – se juntaram para descer ao fundo do Rio Tâmisa em busca de pequenos pedaços de metal, talvez centenas de milhares deles, que Cobden Sanderson jogou dentro do rio muitos anos atrás.
Eles fizeram isso a comando e custo de Robert Green, um designer que passou anos pesquisando e recriando a fonte perdida, que hoje está disponível no Typespec. Conforme Green me disse em uma conversa por telefone, o Porto de Londres hesitou em permitir que seu grupo de mergulhadores buscasse a tipografia perdida. “A preocupação deles era que eu fosse um sujeito maluco procurando por uma agulha em um palheiro e gastando um monte de dinheiro com isso”, disse rindo.
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Cortesia de Robert Green
Não é difícil entender como Green parecia maluco. Um civil oferecendo pagamento para que mergulhadores da cidade buscassem destroços nas profundezas lamacentas do Rio Tâmisa, talvez por semanas, procurando por pequeninos pedaços de metal que foram jogados lá por um designer ensandecido há mais de cem anos? É, parece bem maluco.
No final das contas, demorou apenas vinte minutos para que eles começassem a encontrar pedaços das fontes de metal.
Green passou anos pesquisando a história de Cobden Sandeson, usando psicologia forense para compreender os atos do homem que viveu cem anos atrás, estudando como e onde ele teria jogado as peças. Green limitou o local de busca em uma pequena porção do rio, e foi lá que os mergulhadores encontraram a maioria das peças. “Eles gostaram muito da ideia”, lembra Green. “Eles queriam encontrar algo, e encontraram”.
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Cortesia de Robert Green
Nos dois dias de mergulho, eles encontraram centenas de peças de tipografia, conforme documentado por Justin Quirk do The Sunday Times, que participou do mergulho. Mas não se tratava do conjunto completo. Green lembra que a Ponte Hammersmith foi alvo de dois bombardeios do Exército Republicano Irlandês, sendo que um deles fez as águas do rio atingirem ondas de quase 20 metros de altura, depois que uma mala carregando explosivos foi despejada próximo ao local onde foram arremessadas as peças de tipografia.
Por isso, as peças de metal poderiam ter se espalhado por outros lugares do rio. É também possível que algumas delas tenham sido incorporadas ao concreto que é derramado nos arredores da ponte para reparos.
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Foto por Dafinka/Shutterstock

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Hoje, fontes tipográficas são basicamente pedacinhos de código binário em nossos computadores. Mas a era da fonte digital é nova, contando apenas com algumas décadas.
Cobden Sanderson e o sócio dele, Emery Walker, fundaram a Doves Press em 1900. Walker era um homem de negócios, com muitas preocupações no mundo, mas Cobden Sanderson era o perfeccionista criativo — um homem obcecado com autenticidade e arte. Juntos, eles comissionaram uma fonte para a imprensa deles, baseada na fonte Venetian do século XV. Isso significava ter de pagar um “cortador” para criar “punhos” de metal para cada letra da fonte — da qual uma matriz seria criada ao apertar uma peça de cobre no punho de metal. Depois, a fonte poderia ser inserida na matriz.
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Fotografia de Sam Armstrong, cortesia do Sunday Times
A fonte deles foi criada em 1899 e a dupla a usaria para criar belos livros encadernados à mão, e projetados com o equilíbrio perfeito entre trabalho manual e utilidade moderna. Cobden Sanderson era um pouco esnobe, no sentido de apenas querer permitir que as melhores literaturas fizessem uso da fonte dele – apenas “as mais belas palavras”. Eles imprimiram Paraíso Perdido. Eles imprimiram a Bíblia inglesa. Hoje, cópias destes livros são extremamente raras, e custam milhares de dólares em leilões.
Mas em pouco tempo, a Doves Press estaria em apuros. De acordo com informações da TypeSpec sobre a parceria, Walker queria fechar a empresa e dividir o metal — milhares de quilos dele — da tipografia entre ele e Cobden Sanderson, e cada um seguiria o próprio caminho depois disso.
Conforme explica o Sunday Times, eles chegaram a um acordo que Cobden Sanderson manteria a fonte até o momento de sua morte, e Walker seria o dono depois disso. Mas a ideia de que um trabalho feito por ele cairia nas mãos de Walker o horrorizava. Por isso, no decorrer dos anos seguintes, ele decidiu colocar um plano em ação – um plano que privaria Walker de receber a parte dele do acordo.
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Cortesia de Robert Green
“Ele levou alguns anos até decidir jogar a fonte fora: ele ruminou por anos se deveria fazer isso ou não”, diz Green. Ele escreveu sobre a possibilidade em longos diários (“ele seria considerado alguém que compartilha demais” hoje, conta), deixando para trás informações detalhadas sobre este tumultuado pensamento. No fim, ele decidiu que preferia destruir a fonte a vê-la feita em uma equivalência mecânica de sua versão original. “Ele se apaixonou pela ideia”, alega Green. Foi o próprio Cobden Sanderson quem disse: “Se Emery Walker quer encontrá-la, ele terá que mergulhar”.

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Green passou anos pesquisando a tipografia da Dove Press — ele até a reprojetou, depois de milhares de desgastantes horas de pesquisa, e a publicou em 2013 como uma fonte digital chamada de Doves Type, que qualquer pessoa pode comprar.
No entanto, há mais ou menos um ano, ele começou a se perguntar se existiam destroços da tipografia que poderiam ser resgatadas do rio. “As pessoas diziam que ninguém nunca as encontrou”, ele diz. “Mas também não encontrei nenhum registro que alguém havia tentado procurar por elas”.
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A fonte atualizada, cortesia de Robert Green.
O que nos traz a uma ótima questão: por que motivo alguém procuraria por ela? O que a tornava tão especial, tão valiosa para ser salva?
A Doves Press era uma entidade única, mas, de algumas formas, espelha o que acontece nos dias de hoje no mundo do design. No início da era moderna, a Doves foi fundada para preservar uma arte que tinha centenas de anos de idade. Mas ela também estava destinada a fracassar, ficando marcada na história como uma excentricidade que morreu assim que impressoras mecânicas chegaram ao mercado. Ela valorizava algo acima de tudo: fazer as coisas à mão e com total dedicação.
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‘Oenone’, Alfred, Lord Tennyson, Sete Poemas e Duas Traduções, Doves Press 1902.
Para Green, que trabalhou no mundo do design desde que era jovem, a glorificação que o movimento Arts & Crafts dava a trabalhos feito à mão existe até hoje. “A revolução industrial os assustou”, ele diz sobre os designers daquele período, expondo como a digitalização desvalorizou o trabalho de designers até os dias de hoje. “Uma parte inteira da classe média é afetada”, diz. “O design gráfico está completamente desvalorizado. É muito difícil se manter sendo um designer”.
Métodos tradicionais estão novamente se popularizando. “As pessoas estão retomando a arte da impressão manual para se manter”, diz Green, mais ou menos como fizeram Cobden Sanderson e seus contemporâneos. Não só por causa da autenticidade que ela dá ao trabalho, mas também, diz Green, “porque é divertido”.

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É estranho imaginar que um designer nascido cem anos depois de Cobden Sanderson reconstruiu o trabalho de vida dele.
E de alguma maneira, Green remedia a briga entre Cobden Sanderson e Emery Walker, o parceiro dele. Ao invés de vender as peças de metal da tipografia que ele resgatou do Rio Tâmisa, ele manterá metade e dará o restante para a Emery Walker Trust, entidade que transformou a antiga casa de Walker em um museu sobre o trabalho dele. Cem anos atrás, Cobden Sanderson disse que Walker teria que mergulhar para conseguir a parte dele do trabalho. Estranhamente, ele terá a metade que tem direito, graças à generosidade de Green.